A humildade de São Francisco

O que é humildade? Certamente poderíamos dar uma resposta genérica dizendo que humildade é uma qualidade, no caso para buscar compreender melhor podemos refletir melhor esse questionamento, afinal o que é humildade? Para compreender tal pergunta vamos buscar o significado da palavra.

Por Frei Mendelson Branco, OFM

12/06/2020

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Fonte: Imagem da Internet

Encontramos um significado desta palavra no latim, humildade vem de humilitas que seria a virtude de quem conhece suas próprias limitações, fraquezas e o mais importante, busca agir conforme a consciência que construiu a partir deste olhar para si. É bastante conhecida uma frase que algumas pessoas atribuem ao filósofo grego Sócrates (479- 399), a frase “conhece-te a ti mesmo”, porém esta frase se encontrava na entrada do oráculo de Delfos, local dedicado a Apólo (na mitologia grega, o deus da luz e do sol, da verdade e da profecia). A frase “conhece-te a ti mesmo” tornou-se uma referência de quem busca auto conhecer-se, o conhecimento de quem eu sou.

A definição da virtude humilitas é possível através desse exercício de olhar para dentro de si e conhecer-se, a partir daí encontro a mim mesmo em minhas qualidades e limitações, e não mais uma visão distorcida de mim, ao qual insisto em me colocar acima dos outros. No livro a Linguagem dos Deuses de Antonio Carlos Farjani, a palavra humildade tem ainda outro significado, tem raiz na palavra humus, ou seja, tem relação com a palavra “terra”.

A fórmula latina homo-humus-humilis é altamente esclarecedora: assim como o universo advém do Caos e a ele retorna no final de cada ciclo, o homem, produto da terra, a ela retornará no fim da sua existência, quando então será ‘humilhado’, isto é, baixado ao húmus, por ocasião de seu sepultamento, e passará a fazer parte do elemento fértil subjacente ao solo. (FARJANI, 1991)

Isso nos faz refletir a necessidade de nos abaixarmos, para nos igualarmos com os pé no chão, quando nos falta o exercício da humildade, geralmente nos colocamos nas alturas, acima dos outros, é como uma busca de estar no pedestal, o abaixar-se não está no sentido de anular-se frente ao outro ou inferiorizar-se, mas em descer dos pedestais que criamos e descer ao humus onde a terra iguala a todos.

O orgulho como autoafirmação

Walber Luidhy afirma que ” Nossa humildade é testada todos os dias, a partir de nossas atitudes e ações”, e como é difícil o exercício da humildade, não é? Podemos facilmente sofrer a tentação do orgulho da autoafirmação, porque somos ensinados assim, a humildade nos tempos atuais é confundida como baixo autoestima, por estar para alguns “fora de moda” o que realmente vale é o sucesso físico, financeiro, intelectual ou imaterial. E dessa forma deforma-se a alma.

É necessária ainda mais vigilância principalmente quando começamos a ter o que popularmente se diz “sucesso na vida”.

“O sucesso, seja ele físico, financeiro, intelectual ou “imaterial”, sempre foi um desafio: o risco do sucesso é deformar a alma. Sobre isso, basta ver o horror que é o mundo intelectual e seu profundo desprezo (ao contrário do que querem transparecer) pelo “povo”. (PONDÉ, 2015)

Isso porquê o dito “sucesso” é visto como status de quem está acima dos outros, e a tendência para quem se entrega ao prazer deste status é cultivado de forma violenta nos tempos atuais, encontramos fenômenos como a busca insaciável pela vaidade do poder, de títulos, de cargos de destaque, visibilidade etc. Tudo isso com o desejo orgulhoso da autoafirmação sobre os outros, me colocando acima das outras pessoas, nos tais pedestais que criamos. É claro que podemos até por competência ou desejo de servir, chegar a receber títulos, cargos de destaque, visibilidade ou outras coisas, a diferença de quem busca a virtude da humildade é que isso não envaidece seu coração, nas palavras do filósofo, palestrante e Professor da USP Luiz Felipe Pondé “A humildade é o manto com o qual a alma virtuosa se cobre e esconde sua face. E isso nada tem a ver com tristeza ou falta de percepção do sucesso. A felicidade, quando verdadeira, é sempre uma forma de generosidade.”, por isso a quem muito é dado muito será cobrado, é necessário vigilância contínua no exercício da humildade.

Humildade como a capacidade de ser transparente

“…não sou digno de que entres em minha casa; mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado” (Lc 7,6-7)

Como foi desafiador para o centurião romano o fato deste gesto, socorrer uma simples pessoa do povo ao qual ele dominava e suplicar a cura de seu empregado. Certamente o centurião teve que vencer seu orgulho e amor próprio para se munir de fé e humildade para suplicar a um judeu tal milagre.

O cultivo da humildade está unido ao amor à verdade, o filósofo Comte Sponville diz que “Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo”. Isso significa que a verdade ao qual se destaca nesta frase é assumir oque verdadeiramente a pessoa é, para isso devemos mergulhar na busca do autoconhecimento, para reconhecer-se verdadeiramente diante de Deus e dos outros, acolhendo minhas limitações, fragilidades e medos, e reconhecendo minhas reais capacidades, disposto a trilhar o caminho do crescimento e amadurecimento humano e ao mesmo tempo espiritual. “A humildade não deve ser entendida como humilhação, mas como a capacidade de ser verdadeiro, transparente em nossa vida, reconhecendo-nos necessitados dos outros e de Deus.” (PALAORO), como dizia Santa Teresa, humildade é andar na verdade.

Conhece-te a ti mesmo

A frase “conhece-te a ti mesmo” que normalmente é atribuída ao filósofo grego Sócrates (479-399 a.C.), se encontrava na verdade escrita na entrada do Oráculo de Delfos, local dedicado a Apolo que na mitologia grega é o deus da luz e do sol, da verdade e da profecia.

A atitude de busca interior de auto conhecer-se, é iluminar oque antes estava escondido no mistério das trevas do meu ser, conhecer-se é um caminho de interiorização em busca da verdade de quem eu sou, somente dessa forma viverei autenticamente e mais feliz de forma consciente e equilibrada.

“nessa visão, maturidade não é um desdobramento natural do tempo vivido, e sim resultado da vontade, do esforço de cada indivíduo em conquista-la. Exatamente por isto é possível encontrar pessoas vazias em plena velhice e, ao contrário, mentes sábias no auge da juventude.” (D’ARTE)

Fruto da humildade: humanizar-se

O caminho do “ conhece-te a ti mesmo”, se trilha a vida inteira e exige dedicação do(a) peregrino(a), porém aos poucos este caminho lança luzes na escuridão interior inconsciente e vamos encontrando uma face mais autêntica de nós mesmo, nossas potenciais, capacidades e talentos negados ou desconhecidos e limitações e fragilidades que devemos olhar com atenção e reconhece-los, a humildade se trata da gratidão por nossas boas qualidades, e consciência de nossas fraquezas e limitações.

Por isso a humildade é a virtude que tem como fruto a humanização do homem e da mulher, pois nos leva ao movimento de descida em direção à nossa humanidade, quantas vezes arquitetamos pedestais em alturas colossais, para nos engrandecer com vaidade e orgulho? Pedestais tão grandiosos revestidos com o dourado dos desejos de títulos, elogios, poder, egoísmos, status social. Sem perceber vamos nos envaidecendo e colocando uma máscara de um falso “deus”, e aos poucos nos apaixonamos por esta máscara e a verdade sobre nós mesmos fica destorcida.

É preciso tirar a máscara, descer de nossos pedestais, para humanizar-se e a virtude para isso é olhar com humildade para nós mesmos. Não se trata de desvalorizar a si próprio, mas reconhecer quem verdadeiramente somos, com os pés no chão, humus.

“A radicalidade que o Evangelho nos propõe é a radicalidade de ser radicalmente humanos. E a humildade nos despoja de tudo oque é ilusão, falsas imagens de nós mesmos, vazias pretensões de poder, prestígio e vaidade… fazendo emergir oque há de mais humano, portanto, mais divino, em nosso interior.” (PALAORO)

É o movimento de descida ao fundo de nossa realidade, que retornamos ao humus, nos libertando do orgulho e auto-centramento que nos escraviza com correntes douradas e nos destroem, quando descemos ao humus ou seja a terra ou o solo, nos tornamos fecundos, somos solo fecundos ondes Deus lança sementes que germinam e dão frutos. “Por isso a humildade é a virtude do ser humano que reconhece não ser “deus” (PALAORO).

São Francisco de Assis o servo humilde

De acordo com Dante Alighieri, a gloria de São Francisco de Assis depende do “seu ter-se feito humilde”, isso iluminado pelo Evangelho de Cristo, pois para Francisco o retorno ao Evangelho deve começar a partir de si mesmo. Para entendermos melhor a atitude de Francisco vejamos o que nos aponta as fontes franciscanas:

Um dia, voltando S. Francisco de orar no bosque, e ao sair do bosque, o dito Frei Masseo quis experimentar-lhe a humildade; foi-lhe ao encontro e, a modo de gracejo, disse: “Por que a ti? Por que a ti? Por que a ti?” S. Francisco respondeu: “Que queres dizer?” Disse Frei Masseo: “Por que todo o mundo anda atrás de ti e toda a gente parece que deseja ver-te e ouvir-te e obedecer-te? Não és homem belo de corpo, não és de grande ciência, não és nobre: donde vem, pois, que todo o mundo anda atrás de ti?” Ouvindo isto, S. Francisco, todo jubiloso em espírito, levantando a face para o céu por grande espaço de tempo, esteve com a mente enlevada em Deus; e depois, voltando a si, ajoelhou-se e louvou e deu graças a Deus; e depois, com grande fervor de espírito, voltou-se para Frei Masseo e disse: “Queres saber por que a mim? Queres saber por que a mim? Queres saber por que todo o mundo anda atrás de mim? Isto recebi dos olhos de Deus altíssimo, os quais em cada lugar contemplam os bons e os maus: porque aqueles olhos santíssimos não encontraram entre os pecadores nenhum mais vil nem mais insuficiente nem maior pecador do que eu. (Fioretti, cap. X.)

Francisco de Assis olha para o altíssimo senhor e reconhece sua pequenez diante dele, ao voltar a falar com Frei Masseo, ele expõe a verdade de si, não se esconde por traz de uma máscara de homem perfeito ao qual certamente podemos acabar caindo nesta tentação vaidosa, somente elevando a mente a Deus com São Francisco fez para contemplar a grandiosidade do Altíssimo, podemos reconhecer-nos pequenos, quando olhamos apenas para si, acabamos achando-nos auto suficientes.

Este ato de reconhecer a própria pequenez faz parte de uma relação de natureza teológica entre o homem Francisco e o Senhor Deus:

Temos diante de nós a humildade essencial, aquela da criatura que toma consciência de si na presença de Deus. Enquanto a pessoa se comparar consigo mesma, com os outros ou com a sociedade, nunca terá a ideia exata do que ela é; falta-lhe a medida. “Que acento infinito, escreveu Kierkegaard, coloca-se no eu quando tem como medida Deus!” Francisco teve de modo eminente esta humildade. Uma máxima que repetia muito era: “O que um homem é diante de Deus, assim é, e nada mais”. (CANTALAMESSA, 2013)

Se tomamos consciência de si em relação com os outros, consigo mesma ou com a sociedade, pode-se facilmente engrandecer-se vaidosamente com um elogio, ou o narcisismo, ou até mesmo estar em busca de títulos ou metas que me façam superior, isso turva a visão para enxergar quem realmente somos, ao praticar a atitude de São Francisco de “coloca-se no eu quando tem como medida Deus!” como diz Kiekegaard, Francisco enxerga sua pequenez, o seu nada para preencher-se do tudo que é Deus Altíssimo.

“Sabe, frei ovelhinha de Jesus Cristo, que quando eu dizia as palavras que ouviste estavam sendo mostrados a minha alma dois lumes: um da notícia e conhecimento de mim mesmo, o outro da notícia e conhecimento do Criador. Quando eu dizia: Quem és tu, ó dulcíssimo Deus meu? eu estava em lume de contemplação, em que via o abismo da infinita bondade, sabedoria e poder de Deus. E quando eu dizia: Quem sou eu? estava em um lume de contemplação em que via a profundeza lamentável de minha vileza e miséria ” (Considerações dos Sagrados Estigmas, III (FF 1916)

Ao reconhecer sua pequenez e a infinita grandiosidade, bondade, sabedoria e poder de Deus comparada com sua pequenez e miséria, Francisco de Assis tornava-se livre para buscar e amar o Senhor, pois despojado da vaidade e orgulho buscava a Deus de todo coração, consciente de si.

Por fim o exercício da virtude chamada humildade, não se trata de algo fácil, mas fazendo uma pequena comparação, os exercícios matemáticos por exemplo é preciso muita prática para cada vez mais chegar a um resultado correto, assim também é a humildade, é uma virtude que exige ser exercitada em nosso espírito, a busca de encontrar quem verdadeiramente somos, em relação de si próprio com Deus e com os irmãos e irmãs, e isso se consegue na contemplação da infinitude de Deus e de nossa pequenez se questionando… quem és tú altíssimo Senhor? e quem sou eu?
Paz e Bem!

Referências

CANTALAMESSA, Pe. Raniero. A humildade como verdade e como serviço em São Francisco de Assis. Roma, 2013. Disponível em: https://blog.cancaonova.com/fragmentos/a-humildade-como-verdade-e-como-servico-em-sao-francisco-de-assis/. Acesso em: 3 fev. 2020

CARVALHO, Roger de. Como cristãos, como podemos praticar a humildade?. [S. l.], [20??]. Disponível em: https://formacao.cancaonova.com/series/virtudes-morais-cardeais/como-cristaos-como-podemos-praticar-a-humildade/. Acesso em: 3 fev. 2020.

D´ARTE, Roberto. “Conhece-te a ti mesmo”. [S. l.], [20??]. Disponível em: https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/filosofia/conhecete-ti-mesmo.htm. Acesso em: 3 fev. 2020.

FARJANI, Antonio Carlos (1991). A Linguagem dos Deuses. São Paulo – SP: Mercuryo. pp. 115 e 116

PALAORO, Pe. Adroaldo. HUMILDADE: “andar na verdade”. [S. l.], [20??]. Disponível em: https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/930-humildade-andar-na-verdade. Acesso em: 3 fev. 2020.

PONDÉ, Luiz Felipe. Humildade. [S. l.], 2015. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/humildade-ejq677vicbxmwds1q0l2kyszy/. Acesso em: 3 fev. 2020.